"Tive de aprender a escrever português para os brasileiros"

O cronista e escritor João Pereira Coutinho lança esta quinta em Lisboa o livro "Vamos ao Que Interessa"
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O Vamos ao Que Interessa reúne crónicas de 2008 a 2015 no jornal Folha de S. Paulo. Como começou a sua ligação com o jornal, com o Brasil e com São Paulo?

Começou há dez anos, com um livro de crónicas chamado Vida Independente, hoje uma raridade que só se encontra nos melhores alfarrabistas a preços exorbitantes (entre um euro ou dois). O diretor da Folha leu, gostou e convidou. A relação com o país e a cidade (e até com o jornal) começou muito antes - por escrito. Já era um consumidor atento do jornalismo brasileiro e paulistano.

Que diferenças nota entre as imprensas brasileira e portuguesa?

Parece-me que a imprensa portuguesa foi perdendo força e qualidade. Força, pela quase ausência de boas reportagens, jornalismo de investigação - diz-se que não há tempo, não há dinheiro, não há isto, não há aquilo. Qualidade, pela prosa noticiosa que se publica. Só as crónicas salvam a honra do convento. Há excelentes cronistas em Portugal, melhores até do que no Brasil.

E quais as principais diferenças entre os públicos português e brasileiro: quem comenta mais, quem é mais ofensivo, quem é mais indiferente?

Os brasileiros escrevem mais. Para criticar, aplaudir, levantar dúvidas, insultar. Talvez a diferença demográfica explique. Mas há outra coisa interessante: em Portugal, quando há discórdias, aparece sempre alguém a pedir que eu seja demitido, e que é uma vergonha alguém escrever aquilo. No Brasil é mais raro. Prefere-se a crítica à censura.

Já houve algum caso de lost in translation? Afinal, Portugal e Brasil têm uma língua que osdesune, como dizia Millôr Fernandes...

Tive de aprender a escrever português para um público brasileiro - nos termos que uso, na construção da frase, no uso do verbo. E já houve episódios em que algo se perdeu no meio do Atlântico. Engraçado: quando penso nisso, são quase sempre termos de natureza sexual. Uma vez usei "chupeta", num texto sobre o 50 Shades of Grey, para dizer que o ator tinha um ar tão imberbe que só lhe faltava uma chupeta. O editor telefonou-me para me explicar que "chupeta" tinha um duplo sentido no Brasil. Exatamente esse em que está a pensar.

Usa certos temas na Folha que não usa tanto nos jornais portugueses por sentir que tem mais feedback?

Não. Nunca escolho os temas de acordo com o feedback. Para usar uma formulação pirosa, não somos nós, cronistas, que escolhemos os temas; são os temas que nos escolhem.

Sendo São Paulo uma cidade com comunidades de descendentes árabes e de judeus, a questão israelo-árabe, a que sempre regressa, desperta particulares reações?

O extraordinário é que não são as reações árabes, compreensíveis, legítimas e em certos casos bastante eruditas que me espantam. O que me espanta são as reações críticas de alguns judeus, que às vezes me parecem mais palestinianos do que os próprios palestinianos. O nojo de nós próprios é o verdadeiro motor da história.

Um dos seus alvos preferidos é o politicamente correto tanto na tolerância ocidental para com as várias formas de radicalismo islâmico como na patrulha das liberdades individuais - isto para lhe perguntar o que acha disto de nos recomendarem a não comer bacon?

A melhor forma de responder a isso seria começar o dia com uma bela french toast, à americana. Mas a nossa civilização é tão patética que chegou a isto: não quer viver para não morrer.

Acha que a Folha, que tem desde Reinaldo Azevedo, o cronista mais comentado da direita brasileira, a Gregório Duvivier e António Prata, representantes de uma, chamemos-lhe, esquerda fashion, é o mais plural da tal grande media?

Em matéria de opinião, sim. Mas não sei se o Prata está assim tão à esquerda. Estará? Enfim, já não o vejo há anos, apesar de já termos cantado em bares de karaoke no bairro da Liberdade! Malefícios do álcool, como vê.

Lê cronistas de esquerda? E separa conteúdo de forma? Ou seja, pensa "este tipo só diz asneiras mas di-las muito bem"...

Leio tudo o que vale a pena. E prefiro um grande escritor de esquerda a um mediano escritor de direita, estilisticamente falando. Aliás, leio mais autores de esquerda do que de direita. A razão é óbvia: um autor de direita, mais coisa menos coisa, não me surpreende. Mas ler [o filósofo italiano Giorgio] Agamben ou [o filósofo americano Richard] Rorty, isso sim, é um desafio para testar as minhas certezas.

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